09/02/14

coração resgatado



        
        Era primavera e chovia. O frio ainda não havia ido embora. Alguns nem acreditavam mais que haveria calor naquele ano. A chuva fina molhava o asfalto que se esfarelava em lama. Escargots aproveitavam. Humanos reclamavam.
        Para os habitantes da casa 34 bis da Rue de Souvenir nada disso tinha importância. Não que nunca saíssem, apenas tinham um jeito diferente de olhar para a vida. Fizesse sol, lua cheia, tempestade ou nevasca para eles era sempre a mesma coisa, sempre a mesma sensação de desconforto. Aquela não era a terra certa e, ainda que não se lembrassem mais como foi que seus antepassados chegaram lá, também nada poderiam fazer para sair.
        Foi naquela casa, no meio da primavera de menos dois graus que ela nasceu.
        Para sua espécie era menor do que a média saudável e por isso teve que voltar para a barriga de sua mãe e esperar mais alguns meses de gestação. O que não foi suficiente para que tudo ocorresse bem em seu segundo parto. Ela nasceu com algo a mais. Ninguém entendia bem o que era, mas sentiam no seu cheiro algo de diferente. Os pais, com medo do que pudessem fazer os outros habitantes da casa quando percebessem, a levaram para consultar os mais velhos.
        O casal mais velho entre eles morava no último quarto, depois de subir os vinte e sete andares, pular três janelas, escalar a montanha verde e cruzar o rio de pedras. A distância dos quartos era correspondente ao tamanho da sabedoria do morador. Dessa forma, o último quarto era sempre reservado aos mais sábios.
        Chegando lá os pais contaram seu drama carregando a filha docemente entre os braços tentando não demonstrar o medo de que ela fosse, na realidade, uma criatura horrível. O velho sábio a recolheu, olhou fundo em seus pequenos olhos pretos e cochichou algo no ouvido da velha, que balançando a cabeça, consentiu.
        - Realmente não me recordo qual foi a última vez que vi um caso como esse. Se trata de uma anomalia delicada, vocês terão que tomar todos os cuidados necessários e ainda assim não posso garantir que ela cresça como os outros.
        A mãe, em prantos, não conseguia tirar da cabeça o enorme sentimento de culpa. O pai, também desolado, mas com um pouco mais de esperança, ainda questionou:
        - Mas do que se trata, afinal, meu velho sábio? Qual é seu problema?
        E o velho, olhando fundo em seus olhos também pretos, apontou para o peito da criatura tão frágil e explicou:
        - Ela nasceu com um coração.

Texto de Ana Luísa Gonçalves Rodrigues (http://analuisagr.tumblr.com/)